sábado, 25 de setembro de 2010

Medidas, por Danita Cotrim


Como se mede a vida de uma mulher?
Pelo comprimento ou pela largura?
Ou pela banda da cintura?
Pelo quanto juntou ou pelo tanto que já deu?
Pela quantidade de filhos, quilos ou títulos?
Pela altura da sua cultura?
Pela barriga chapada, pelo cabelo chapado?
Se avalia pela idade ou pelo estado?
Pelo tanto que dura ou por quanto ela atura?
Se está lascada ou polida?
Alguém tem aí uma régua para se medir a vida?

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Speculum, por Nuria Basker

(PUBLICADO NO FANZINE AMARELLO - Edição 3 - O MEDO)


No meu quarto tem um espelho. Eu olho de frente e, em vez de uma, são duzentas, duzentas e vinte imagens. Vejo as vencedoras e as perdedoras, as belas e as cegas, as certezas e o futuro. Vejo quem eu nem reconheceria. Uma senhora de noventa e sete anos tenta pegar um copo d' água, as mãos finas mal alcançam. As mãos finas são as minhas. Vejo ainda uma criança, loira. Espera. O que meu nariz está fazendo na cara dela? Ai, se eu pego essa menina. E de pensar que uma das duzentas, duzentas e vinte, a pior delas, seria capaz de maltratar uma criança. Lá no fundo estão a enfermeira, a policial, a louca e a assistente social. Todas conversam com a que queria maltratar uma criança. Facilmente a dissuadem. A executiva politicamente correta, bem na frente, aplaude. Eu tenho medo de tanta gente. Eu tenho medo das que duvidam de mim. Eu tenho medo das que me incentivam com segundas intenções. Eu tenho medo de mim. Preciso saber falar tantas línguas que até do código masculino preciso entender (umas quarenta, quarenta e cinco imagens são de homens). Eu olho no espelho todo santo dia e nenhuma delas parece morrer. Pelo contrário, algumas acreditam em espíritos, o que só multiplica a multidão multidisciplinar. Duas ou três rainhas (sendo uma africana), guerreiros, Mata Hari, um médico chinês, camponeses,Cleópatra e uma etrusca sonhadora usando brinco de ouro. Tento buscar a escritora, o guru, o anjo decaído, a centrada, a dançarina, a deusa do prazer. Eu tenho medo de não agradar os que tanto gosto. Sei que todos estão lá e mando mensagens. Um beijo, uma piscada, uma oração, um poema, uma dúvida. À noite, apago a luz e meus sonhos continuam conversando com o bendito especulador. O que me vê. O espelho. O que me dá medo.

domingo, 12 de setembro de 2010

Retalhos de Silêncio, por Danita Cotrim



Comece a colecionar silêncio. Não é fácil em uma cidade como São Paulo.
Mas em doses pequenas, pode ser recolhido nas pinças da observação.
Comece com aquela fração que está nas passagens do ponteiro do relógio,
quando se move de um a outro segundo. Entre o Tic e o... Tac.
Poderá encontrá-lo no quartinho fechado, quando o finalmente o recém-nascido dorme
e mãe exausta segura a respiração para que nada mais se mova.
A breve quietude no salão com cadeiras viradas
e chão úmido, pois hoje não haverá balada.
E na madrugada,
na demora do farol, entre a luz vermelha e verde,
quando na avenida nenhum carro passa pelas Águas Espraiadas.
Nesse volátil instante os pássaros ainda dormem, pois começa uma terça-feira.
Contabilize o hiato que precede o primeiro beijo.
Ou aquele após o abandono da amada.
A paz do escritório no momento que as luzes cedem e milagrosamente desligam o ar condicionado.
O abismo que sobra quando a equipe fecha a porta do centro de cirurgia.
Capture a lembrança silente e sem agrotóxicos, quando o guia turístico pede a todos que apaguem as lanternas e segurem a conversa no interior da caverna.
Então, quando tiver arrematado seus retalhos de silêncio, poderá tecer com eles uma colcha com todas as cores noturnas, costurada a pontos largos, mas com os bordados miúdos dos insones.
Esta manta é que irá nos cobrir na eternidade.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Sombra do Silêncio, por Giovanna Vilela

Há pessoas que adoram a solidão. Mas há também as que ignoram estar sós, e estar só quando acompanhada é dor que não acaba mais.
Tenho um prazer quase perverso em assistir a esses mundos. Talvez por estar vendo de fora, do outro lado do muro de silêncio.
Nossas risadas enchiam a mesa redonda de alegria e mostravam a quem se interessasse um universo em movimento, cheio de diversão e cumplicidade. Amigos antigos.
De dentro desse mundo assisti quando um casal entrou no restaurante. A mulher loira tinha os cabelos e o humor descorados pela tristeza e o tempo. Ela olhava para baixo a procura do que ficou para trás talvez. O marido era mais velho embora o físico atlético enganasse um pouco.
 Sentaram-se a mesa ao lado e ficou claro para mim que nossa mesa os incomodava.
Não o barulho, as risadas, mas a vida que derramava do nosso lado e escorria para seus pés.
Nenhuma palavra foi dita por eles, apenas alguns olhares carregados de tensão, um tipo de tensão acumulada e sem esperança de acabar.
O garçom se aproximou depois de um sinal feito pelo homem e anotou o pedido. Saiu e deixou o deserto sobre a mesa entre eles. Nesse momento não ouvi mais nossos risos, ouvi os gritos mudos que ecoavam da mesa ao lado.
Vi o dia em que ele a pediu em casamento. Ainda eram jovens. Acreditavam que a vida juntos seria perfeita. Pra ela, seria a chance de escapar dos olhos dos pais, além é claro, do gostinho de vitória entre as amigas, uma nova etapa na vida ,uma nova fase onde a maior preocupação seria o marido, a nova casa e os problemas de trabalho. Do trabalho dele é claro.
Ele deve te-la levado para jantar como hoje. Tirou do bolso uma caixinha enquanto pensou em seu último salário reduzido àquele embrulhinho que agora representava o futuro. Embriagado em parte pelo vinho e um pouco pelo medo. Olhou para os olhos ainda iluminados e passou as mãos pelos cabelos dourados da mulher que amava. Sabia o que queria e esta certeza enchia de força suas decisões e palavras. Ignorou as mesas ao lado, nem ligou para a invasão de olhares.
Entregou a caixinha e junto a promessa de um amor cheio de surpresas e nisso estava certo.
O garçom passou pela nossa mesa com outra bandeja de chopp e uma água para o casal ao lado, ainda mudo.
Lembrei de um soneto decorado na minha adolescência:
"De repente do riso fez-se o pranto 
Silencioso e branco como a bruma 
E das bocas unidas fez-se a espuma 
Das mãos espalmadas fez-se o espanto.De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama 
E da paixão fez-se o pressentimento 
E do momento imóvel fez o drama.De repente, não mais que de repente 
Fez-se de triste o que se fez amante 
E de sozinho o que se fez contente.Fez-se do amigo próximo o distante 
Fez-se da vida uma aventura errante 
De repente, não mais que de repente."
Os pratos chegaram e vi quando ela comeu sem sentir sabor, sem saber discernir o ruim do aceitável, o prazer da ilusão. Ele ainda tinha um quê de vida, vida fora dali, onde ainda haviam desafios e prazeres. Não parecia triste, cansado talvez. Decepcionado, mas tinha pressa. Cortou a picanha esperando acabar logo a obrigação do final de semana e voltar à vida, à mesa de bar com os amigos, o futebol, o trabalho. 
Pagaram a conta, o preço de suas escolhas. Devolveram meu olhar com desprezo e desculpas por estarem do lado de lá. Partiram, como entraram , sem trocar uma só palavra, sem cruzar os olhares sem tentar mudar.

Volta para casa

Empurrou a porta da cozinha com a lateral do corpo, colocou as sacolas sobre a mesa deixando escapar um tomate que correu até os pés da mulher. Ela o recolheu e começou a esvaziar os sacos. Abobrinha, carne moída, alho, cebola, grão-de-bico, lentilha, trigo, hortelã. Em poucos minutos estava tudo separado, picado, moído, de molho ou dentro das panelas que ferviam em cima do fogão.
Faizel puxou uma cadeira e sentou na ponta da mesa seguindo os movimentos da mulher. Ele não tinha a autoridade de seu pai. Depois de desembarcar no Brasil aos 12 anos foi perdendo a força. Mesmo indo à igreja todos os domingos, estava longe de casa, da sua cultura, isolado em um país de hábitos liberais. Muitos de seus conterrâneos sentiam-se à vontade por aqui, mas Faizel sempre quis voltar para a Síria. Planejava viver a eternidade em Damasco. Era a hora certa de partir.
_ Você vai se atrasar, está pensando em quê?
Não respondeu. Ergueu o corpo da cadeira e ficou olhando para a mulher que falava e gesticulava com a faca na mão direita. O pé escorregou e ele viu o chão do mercado onde seus pais vendiam especiarias. Cravo-da-índia, canela, açafrão, páprica, cardamono, cominho, pimenta da jamaica, bhar, snoubar, summac, tomilho, zahtar, gergelim. O perfume das frutas secas e do carneiro assado reuniram-se ao azedo do porão do navio que o trouxe para cá. Uma chuva vadia balançava a embarcação como seu pai costumava fazer com ele quando roubava figos e tâmaras escondidos dentro do armário da cozinha. Depois, o pai se arrependia e calava por dias. Era um homem bom que cometera vários erros. Erros que o obrigaram a fugir para estas terras distantes que nunca agradaram ao pequeno Faizel. Mesmo correndo riscos, o velho Fadel retornou à Siria para buscar a mulher e os outros dois filhos. Se uma viagem de navio durante quatro meses foi um inferno, imagina fazer o trajeto três vezes. Só o amor e a fé explicam a determinação do pai. Ele aceitou até mesmo que eu seguisse outro caminho, que fugisse do destino de comerciante para ser engenheiro.
A adaptação ao novo país não foi fácil para Faizel. A comida, os cheiros, os hábitos dos brasileiros o incomodavam. Quando Fadel retornou ao Oriente para buscar o restante da família, o menino ficou hospedado na casa dos pais de Esther. As crianças não se viam muito, pois Faizel passava o dia trabalhando na loja de tecidos do futuro sogro, que mais tarde seria sócio de seu pai. Junto com as irmãs, Esther ajudava a mãe nos deveres de casa e na cozinha. O que mais agradava Faizel depois de um longo dia de trabalho era o cheiro da comida sendo preparada para o jantar e o som das vozes das mulheres de sua terra. A língua que ele não queria esquecer, os odores penetrando na sua pele. Eram os mesmos que sentia agora estatelado no chão da cozinha de sua casa. A casa construída há trinta anos para morar com sua Esther. Os sons eram diferentes. Agudos aflitos ao invés de doces trinados. Em uma das paredes, uma foto sua ao lado da mulher ria para ele. Era hora de voltar à sua terra.