quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Volta para casa

Empurrou a porta da cozinha com a lateral do corpo, colocou as sacolas sobre a mesa deixando escapar um tomate que correu até os pés da mulher. Ela o recolheu e começou a esvaziar os sacos. Abobrinha, carne moída, alho, cebola, grão-de-bico, lentilha, trigo, hortelã. Em poucos minutos estava tudo separado, picado, moído, de molho ou dentro das panelas que ferviam em cima do fogão.
Faizel puxou uma cadeira e sentou na ponta da mesa seguindo os movimentos da mulher. Ele não tinha a autoridade de seu pai. Depois de desembarcar no Brasil aos 12 anos foi perdendo a força. Mesmo indo à igreja todos os domingos, estava longe de casa, da sua cultura, isolado em um país de hábitos liberais. Muitos de seus conterrâneos sentiam-se à vontade por aqui, mas Faizel sempre quis voltar para a Síria. Planejava viver a eternidade em Damasco. Era a hora certa de partir.
_ Você vai se atrasar, está pensando em quê?
Não respondeu. Ergueu o corpo da cadeira e ficou olhando para a mulher que falava e gesticulava com a faca na mão direita. O pé escorregou e ele viu o chão do mercado onde seus pais vendiam especiarias. Cravo-da-índia, canela, açafrão, páprica, cardamono, cominho, pimenta da jamaica, bhar, snoubar, summac, tomilho, zahtar, gergelim. O perfume das frutas secas e do carneiro assado reuniram-se ao azedo do porão do navio que o trouxe para cá. Uma chuva vadia balançava a embarcação como seu pai costumava fazer com ele quando roubava figos e tâmaras escondidos dentro do armário da cozinha. Depois, o pai se arrependia e calava por dias. Era um homem bom que cometera vários erros. Erros que o obrigaram a fugir para estas terras distantes que nunca agradaram ao pequeno Faizel. Mesmo correndo riscos, o velho Fadel retornou à Siria para buscar a mulher e os outros dois filhos. Se uma viagem de navio durante quatro meses foi um inferno, imagina fazer o trajeto três vezes. Só o amor e a fé explicam a determinação do pai. Ele aceitou até mesmo que eu seguisse outro caminho, que fugisse do destino de comerciante para ser engenheiro.
A adaptação ao novo país não foi fácil para Faizel. A comida, os cheiros, os hábitos dos brasileiros o incomodavam. Quando Fadel retornou ao Oriente para buscar o restante da família, o menino ficou hospedado na casa dos pais de Esther. As crianças não se viam muito, pois Faizel passava o dia trabalhando na loja de tecidos do futuro sogro, que mais tarde seria sócio de seu pai. Junto com as irmãs, Esther ajudava a mãe nos deveres de casa e na cozinha. O que mais agradava Faizel depois de um longo dia de trabalho era o cheiro da comida sendo preparada para o jantar e o som das vozes das mulheres de sua terra. A língua que ele não queria esquecer, os odores penetrando na sua pele. Eram os mesmos que sentia agora estatelado no chão da cozinha de sua casa. A casa construída há trinta anos para morar com sua Esther. Os sons eram diferentes. Agudos aflitos ao invés de doces trinados. Em uma das paredes, uma foto sua ao lado da mulher ria para ele. Era hora de voltar à sua terra.

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