terça-feira, 26 de outubro de 2010

Saber de Cor

Fui educada por aforismos. Sabedor que a distância das idades nos afastaria, por descaminhos, incompatibilidade ou morte, meu pai achou um jeito de meter na minha cabeça suas frases feitas, ferramentas de precisão que eu pudesse usar para torcer os parafusos ou desatar os nós da vida.

Assim, quando eu perguntei a ele se namorava com o primeiro, que gostava de mim a ponto de querer marcar minha testa com um carimbo de noivado, ou se me atirava nos braços do segundo que me acenava com uma aventura, ele respondeu:“Não importa. Fique com um ou com outro, mas não fique com um pé em cada canoa.”.

Cansada de engolir desaforos de um chefe que afiava sua auto-estima na dignidade dos funcionários, comuniquei meu pai que pediria as contas, mandaria o homem às favas e procuraria outra coisa para fazer. Ele me lascou outra locução:

“Faça como a arara, primeiro prenda o bico e depois solte as pernas”. Assim eu fiz. Arranjei outro emprego antes de pedir demissão. E segui esse padrão sempre que pude. Mas logo mais o novo desafio já perdia a graça e sempre há no trabalho alguma coisa que nos apoquente. Quando me viu reclamando, meu pai mandou outro adágio:

“Filha, em todo lugar, urubu é preto”. E é mesmo.

Pai velho e filha menina. Por dentro, camaradas de boteco.

Uma recontada (ou requentada) dele, que sempre penso para refrear os impulsos e frear a língua é: “Tu és senhor das palavras que não pronunciaste e escravo das que escaparam”. Se o dinheiro contado não sobrava para um programa de final de semana, restaurante ou cinema, ele aconselhava:

"Boa romaria faz que em sua casa fica em paz”. E lá ficávamos, em casa. fazendo palavras cruzadas, declamando os poemas que ele escreveu e nunca publicou, cantando as músicas que ele compôs e não foram gravadas. Mas estão registradas. Ainda que na memória e com patente requerida. Já contei para minha filha muito dessa sabedoria. Vou por aí murmurando uma ou outra palavra, antes que mais poeira se assente sobre minha voz.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Cortina e Persiana, de Angela Senra

Ele era silêncio.

Aliança na mão esquerda, nos olhos duas estrelas penduradas.


Todos os dias me cumprimentava com um toque frouxo no rosto. Eu tentava reter um dedo, um pedaço de braço, de ar. Quando se distraía, eu me encostava nele como uma cortina. Ele desviava se desculpando feito uma persiana.


Minha tia Helena diz que só se conhece um homem na cama.


Nunca seremos apresentados.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Migalhas, por Giovanna Vilela

Olhando de cima, tudo parecia igual.
Lixo. Restos de gente.
De pé, escondido se atrás de grades, um homem.
Parecia assustado. Com medo. Fugindo talvez.
Do lado de cá, policiais continuavam vivendo.

Psiu. Sem olhar direito para o animal que, se mexendo,
colocava em risco sua liberdade fez sinal para o bicho calar.

Olhou de novo. Olhou para baixo.
Bicho igual nunca viu. Se viu, não reconheceu.
Seus movimentos faziam lembrar um gato. - Quieto Bicho!
Olhou de novo. Agora enxergou um pouco assustado.
Das migalhas sem cor, viu que o rosto latindo era o rosto de um homem.